O novo velho continente e suas contradições: A Europa e o mundo depois da pandemia
Surgiu uma certa evidência quanto ao papel do Estado no enfrentamento da pandemia e a sua superioridade sobre o mercado. A desmoralização e enfraquecimento do Estado foram promovidos pelo neoliberalismo, liderado pelas atividades financeiras, propagadoras de uma ideologia que defende a privatização de todas as atividades humanas em benefício dos detentores de privilégios
A doença começou na China mas o epicentro transferiu-se rapidamente para a Europa, onde chegou em 24 de janeiro. O primeiro país em que se verificaram os primeiros casos foi a Itália, onde o vírus atacou com força avassaladora. E espalhou-se pelo resto do continente. A velha Europa, devastada no ado por violentas guerras e que teve forças para se reconstruir, enfrenta agora uma nova devastação e ninguém sabe quando deve começar a se recuperar. Mas a pergunta está na boca ou na cabeça de todos: o que vai ser a Europa e o mundo depois deste brutal ataque de um vírus até então desconhecido? Uma praga que interrompeu a produção industrial, paralisou as escolas e os trabalhadores e desorganizou a economia dos países.
Muitas opiniões juntam-se para dizer que nada será como antes. Mas como será depois? Os otimistas anteveem um mundo melhor, mais solidário e mais consciente do que simplesmente o estar num mundo confuso e contraditório. Os pessimistas acreditam que algo muito pior está para vir após este ataque brutal de forças desconhecidas. Sobraria o espaço dos que se consideram realistas mas estes se perguntam que mundo será este depois da agem da famigerada Covid-19.
A gripe espanhola
Volta-se a estudar os exemplos que a História deixou. A referência mais citada é a da gripe espanhola, uma doença que, como o coronavírus, atacou também o sistema respiratório e que também começou na China. Infectou 500 milhões de pessoas, na época um quarto da população mundial e deve ter matado, pelos cálculos inexatos que foram feitos, possivelmente 100 milhões de pessoas. Diz-se que os coveiros deixaram de enterrar os corpos porque também eles estavam doentes. Ao contrário da Covid-19, a maioria das vítimas foi de adultos jovens. Era a primeira epidemia do vírus classificado com o nome de H1N1. A segunda voltaria a ocorrer em 2009, quando recebeu o apelido de Gripe Suína e não teve tantos casos fatais, comparados com os da gripe espanhola. As mortes foram de 18.449 pessoas nos quatro continentes. A gripe espanhola atacou em três ondas sucessivas. A segunda, em outubro de 1918, foi a mais violenta.
Alguns epidemiologistas se referem à gripe espanhola como a pandemia esquecida, pois a coincidência com o morticínio da Primeira Guerra Mundial diluiu o seu impacto e a fez deixar de ser foco de atenção nos anos posteriores.
O que virá depois
O volume de informações veiculado pela mídia tradicional e pela internet, nestes tempos de coronavírus, faz com que se levante a questão: depois do impacto desta epidemia que paralisou o mundo, como será a vida depois dela? Um certo consenso parece ser o de que será diferente. O incurável otimismo garante que tudo deverá caminhar para um mundo melhor e as redes sociais chegaram a discutir com entusiasmo a melhoria do ar e das águas oceânicas. Algo que em seguida foi minimizado como fake news.
Mas surgiu uma certa evidência quanto ao papel do Estado no enfrentamento da pandemia e a sua superioridade sobre o mercado. A desmoralização e enfraquecimento do Estado foram promovidos pelo neoliberalismo, liderado pelas atividades financeiras, propagadoras de uma ideologia que defende a privatização de todas as atividades humanas em benefício dos detentores de privilégios. Estabeleceu como dogma a hegemonia de um mercado com a sua mão invisível, conceito criado no Século XVIII por Adam Smith, a dirigir as atividades humanas. O conceito moderno do Estado como “a nação politicamente organizada” tem sido negado em benefício do que os ideólogos da direita política e seus economistas definem como liberdade mas que na verdade promoveu o sequestro das atividades produtivas pela indústria financeira. Debaixo dos slogans que pregam o estado mínimo, na maioria dos países a Saúde e outros valores sociais imprescindíveis aram para mãos privadas. São comercializados planos de saúde e previdência a preços ináveis para a classe trabalhadora e mesmo para as classes médias.
Foi este o sistema que o advento do coronavírus veio questionar. Evidenciou-se o valor e a importância da saúde pública e das medidas que só o Estado poderia promover. É o Estado que vai garantir a permanência dos direitos sociais e promover a recuperação das empresas depois da agem desta pandemia.
Cito o artigo de Mario Jorge Neves no jornal Público, de Portugal: https://www.publico.pt/2020/04/08/opiniao/opiniao/pandemia-so-solucao-europa-social-1911458/amp
“A Europa precisa de ser refundada noutras bases, com uma perspectiva muito clara da construção da Europa Social, com políticas públicas fortes, com Estados centrados no aprofundamento da coesão social, além de mais democracia e mais participação dos cidadãos”.
Foram os partidos democratas cristãos que, na Europa do pós-guerra, insistiram nas teses alemãs do Estado de Bem-Estar Social, desenvolvidas no Século XIX. É o estado de bem-estar social que tem sido rapidamente corroído pelo avanço do neoliberalismo. Tratava-se de uma alternativa ao socialismo pregado pelos partidos de esquerda, com destaque para os partidos comunistas. Eles haviam liderado a luta antifascista durante os anos da resistência. Apesar dos avanços e recuos, o socialismo nunca deixou de ser uma aspiração política superior para a construção de um mundo mais justo para o futuro da Humanidade.
Fonte: CARTA MAIOR